Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.
Clarice Lispectorando só pois só eu sei pra onde ir por onde andei ando só nem sei por que não me pergunte o que eu não sei
pergunte ao pó desça o porão siga aquele carro ou as pegadas que eu deixei pergunte ao pó por onde andei há um mapa dos meus passos nos pedaços que eu deixei
desate o nó que te prendeu a uma pessoa que nunca te mereceu desate o nó que nos uniu num desatino um desafio
ando só como um pássaro voando ando só como se voasse em bando ando só pois só eu sei andar sem saber até quando ando só
humberto gessinger
O ciúme dói nos cotovelos, na raiz dos cabelos, gela a sola dos pés.
Faz os músculos ficarem moles, e o estômago vão e sem fome. Dói da flor da pele ao pó do osso. Rói do cóccix até o pescoço Acende uma luz branca em seu umbigo, Você ama o inimigo e se torna inimigo do amor. O ciúme dói do leito à margem, dói pra fora na paisagem, arde ao sol do fim do dia.
Corre pelas veias na ramagem, atravessa a voz e a melodia.
caetano veloso
Permissão
ressaca pós-multidão
Eu sofro do que chamo de ressaca pós-multidão.
Acho que o sentimento de inadequação é tão grande que, quanto mais gente, maiores os parâmetros de comparação para se sentir deslocado. Mesmo entre amigos, mesmo entre conhecidos. Há um momento da noite que irei brincar de ilha. E no dia seguinte sempre bate a tal ressaca.
Especialmente se estou encarando uma multidão esperando atenção de uma pessoa.
Ai se não respirar fundo e contar ate dez, é pânico na certa. Sempre fico comparando, que os outros se divertem mais, que tem mais atenção, que os assuntos são melhores, que dançam mais e melhor (isso é verdade), que tem mais atenção das mulheres (isso com certeza é verdade). Pra variar presto mais atenção nos outros do que em mim, e óbio, não posso aproveitar a festa pq não estou lá. Mas também quando estou concentrado no meu momento, uma hora acho que estou perdendo todos aqueles momentos que não estou participando.
Pra mim, cinco pessoas já é multidão.
Pq acima desse numero fica bem mais dificil ter atenção de todo mundo ao mesmo tempo.
E sempre que me sinto deslocado e inadequado tenho uma vontade louca de ler, aprender, escrever alguma coisa. Como se em alguma teoria morasse as respostas para o que estou sentindo naquele momento. Quantas vezes não parei numa banca, altas da madrugada, para comprar um revista bem “cabeçuda” e teórica. O mais engraçado é que sempre funciona.
Acho que já esta na hora de perceber que o que preenche o meu vazio não é corpo, é mente.
Puta merda, nessas horas meu cérebro coça. Da uma vontade danada de encarar uma teoria daquelas que não se entende direito de primeira, nem de segunda. O que no meu caso não precisa ser muito complicada, o que facilita bastante encontrar uma.
O lado bom de brincar de ilha no meio da multidão é que as vezs eu tenho umas sacadas genias. A melhor delas em geral é resolver ir embora.
Mas outras coisas vem a mente, e as vezes são úteis.
Descobri numa dessas que tenho um buraco quadrado dentro de mim, que sempre tento preencher com pessoas redondas, ou de qualquer outra forma. Resultado, sempre fica um canto, uma beirada vazia. As vezes forço um pouquinho pra ver se cabe melhor. Mais ao cobrir um canto, outro se descobre.
Hoje eu tenho uma obsessão redonda para o meu buraco quadrado.
Há obsessões que são movidas pela vontade de preencher. E há as obsessões movidas pelo desejo de expandir. O problema é que eu dificilmente sei qual é qual. E em geral é brincando de ilha que eu descubro.
Esta noite eu brinquei um pouco de ilha, lambendo uma ferida quadrada, causada por uma pessoa redonda, e conclui satisfeito: Não há desejo que sobreviva ao Créu.